1934
1934-Recordações
António, sapateiro por necessidade,sentado no seu banco onde consertava e fazia sapatos,viu sua memória recuar e focando seu olhar ,viu como um filme cada fita ser repassada.
Hoje revoltado sabia que lhe tinham tirado tudo,era professor,muito bem dito,era,tocava viola,bandolim e acordeão, compunha suas músicas e escrevia suas letras,mas por ironia do maldito regime que estava no activo,viu tudo acabar,tinha mulher e filhos para cuidar e assim se designava a trabalhar de sol a sol para que não faltasse pelo menos o mínimo à sua família.
-oh,quem dera poder ter minhas coisas de volta,mas há uma coisa que não são capazes de tirar,minha maneira de ver o mundo,de não calar a minha voz.
-Antonio repetia isso muitas vezes,um homem de esquerda,que via todos os dias a ramona que fazia parte da pide,levar seus amigos para torturar,física e psicologicamente.
Seus amigos,sim eram,faziam parte de um grupo unido por querer que o povo pudesse falar,lutar,por coisas que existiam e que eram contra sua maneira de aceitar.Antônio já tinha sido levado pela ramona e como os outros foi torturado.
Não foi fácil ser detido em casa diante de sua mulher e filhas.Voltou ,um dia certamente iria lá ficar,bastava só um camarada seu não aguentar e denunciar.
-Antonio! Acorda, tens um trabalho para fazer ! Seu olhar voltou à realidade,sim tinha um trabalho para fazer,redigir as 4 folhas que faziam parte do jornalinho manual,para que fosse distribuído e informar quem ali vivia e outras terras o que se passava,porque bem basta ter que viver sob o regime que não aceita,como não informar o povo.
Batizou o jornal pelo *Povo*,clandestino,onde falava as verdades,a pide,os presos políticos,o deitar abaixo profissões, cortarem o que as pessoas sentiam,viver mal,serem assaltados a qualquer hora nas suas casas,revistar tudo e por vezes serem levados para calabouços onde eram torturados para falarem o nome dos que agiam contra o regime e quem era seu mentor.
-Assim com cautela seguia para casa,onde tinha horta,galinhas e pouco mais para sobreviver.Era nessa horta que cavava e era alí ,uns palmos abaixo do chão, numa caixa escondida,que guardava folhas de papel, tinteiros e lâminas de bico que serviam para escrever,um papel químico já gasto ,mas que dava para passar algumas coisas e completar o resto a mão.
De Seguida Antônio na noite já serrada juntava-se com seus companheiros,o jornal era escrito,não muitos ,mas todos os dias deixavam 6 jornais para que os habitantes os levassem aos vários sítios da vila.Todos se entreajudam,passam a palavra,arranjam cantos de aves,uma discussão no meio da rua,só para avisar da chegada da ramona.
Nao valia de nada se esconderem,levavam sempre alguém, era preciso é que ninguém descobrisse quem escrevia,o mentor do jornal, para dar voz à sua luta.
O tempo foi passando,cada dia que a ramona lá ía, levavam 3 ou 4,já não voltavam todos,ficavam presos,presos políticos por atentado ao regime.
António pressentia que um dia lhe ia acontecer o mesmo,havia guerra na altura e o País se ressentiu muito.Havia escassez de alimentos e tinham que levantar comida com senhas.Só calhava pouco a cada família e isso poderia fazer com que falassem,o sentir fome.
O jornal continuou a sair e António ia escapando,porque embora fosse vigiado, nunca ninguém conseguiu encontrar o material com que fazia o jornal.Continuou sapateiro,estragou sua vida com a bebida,foi sempre um revoltado.Morreu tinha sua neta 8 anos,por mais um pouco tinha assistido a revolução dos cravos,o fim do regime Salazarista,tinha visto a manobra dos militares para conseguirem derrubar o regime,tinha visto que o começo partia de uma canção transmitida no rádio, o sinal para avançarem ,se calhar se fosse vivo também tinha ajudado a fazer a letra a compor a música, quem sabe se até podia ter concretizado o seu sonho, sentir-se livre.
Hoje sua neta é apartidária,mas sentiu muito quando ouviu suas tias contarem pequenos episódios do avô,talvez agora com 60 anos sinta orgulho por quem correu risco de vida mas era leal a si mesmo, querer uma vida melhor.Foi um revoltado,mas de uma coisa pode lá em cima se orgulhar,os textos existem, foram colocados na urna da mulher que guardou tudo como uma relíquia e pediu para quando morresse os levar e levou,na mesma caixa,voltou para uns palmos abaixo do chão.
Pelo menos aí foi feliz,mesmo com o vinho todo,onde afogava sua revolta,sua mulher nunca deixou de o admirar.
Uma pequena memória contada por 2 filhas que se orgulham muito deste homem,o seu pai.
Uma pequena memória ouvida pela neta,comovida, visualiza tudo,o banquinho de sapateiro, os sapatos a serem consertados, os olhos azuis, a expressão sisuda,a caixa onde a avó tinha as letras das músicas, as cartas de amor,as rosas secas,guardadas com muito carinho,um jornal com letras muito desmaiadas,fotos,um relógio, um lenço e um bandolim que ninguém quis,mas que sem saber da história,o levou para sua casa,onde permanece há 36 anos, decorando e com muitas músicas ,muitas histórias e muitas recordações.
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